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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Conto um: O caso do algodão doce

 Há algum tempo atrás eu costumava dar umas voltas pela Praça São Sebastião. É um lugar localizado no centro de Manaus, um pouco distante de onde resido. Eu lá andava para realizar meu ofício de jornalismo, principalmente em Dezembro, em que o fluxo de pessoas praticamente triplica. As festas de fim de ano sempre atraem mais pessoas para esses locais onde montam árvores natalinas – monstruosas - e um excesso de luzes que me dói à vista, nada bom para meu astigmatismo. Foi em um desses dias, lá por quinze de Dezembro, que algo me chamou a atenção. Naquele vai e vem de pessoas, tanto barulho e tanto blá-blá-blá, eis que uma mulher caminha com sua filha. Eu estava lendo um livro de bolso qualquer e já havia terminado meu turno do trabalho. Sentada no banco, eu me deliciava com uma pipoca – a melhor daquela praça, sem dúvidas. – e em um instante parei minha leitura para prestar atenção no movimento. A tal mulher com sua filha de aproximadamente seis anos sentaram-se no banco ao lado do meu, e aparentemente era uma pessoa qualquer, que se senta ao seu lado para deixar sua filha ir brincar com outras crianças... Mas não. De início nada pensei, porém, é inevitável meu instinto de observação. Minha pipoca acabara, e o cansaço já chegava à mente, me impedindo de entender qualquer parágrafo do livro, um que fosse. Eu já quase me retirava, quando começava o melhor da noite. Ou o pior.
                Observei as vestes da mãe, eles não chegavam nem aos pés da humildade. Na camisa, ou poderia desconfiar que tivessem diamantes... E os sapatos então, eram tão altos e reluzentes que a filha ficava reduzida abaixo da cintura. Esta última também não ficava de fora, suas roupas eram da melhor marca, talvez importadas. Comparando à minha camiseta regata e minhas calças jeans, vi-me na condição de mendiga. Porém, não é este o ponto em que quero chegar. A garotinha dos cabelos dourados e olhos de mel pediu um algodão doce, enquanto terminava de amarrar os cadarços de seu sapatênis. A mãe respondeu-lhe que esperasse. O moço que vendia algodão doce já virava as costas, foi quando a menina alegou que ficaria sem o seu doce.
                - Mãe, ele já vai!
                Depois de ser chamada, retirou os olhos de seu celular. Não parecia nem um pouco contente quando a filha falou pela segunda vez. Mandou, furiosamente, que chamasse o moço. E seus olhos voltaram para o aparelho eletrônico. A menina não só o chamou como correu em direção a ele. Seus cabelos encaracolados voavam ao vento, foi quando passei a admirar seus gestos. A mãe, quando percebeu a filha correndo, novamente se enfureceu. Ao longe, ela falava com o moço do algodão doce e apontava para o assento em que sua mãe estava. Os dois foram na direção apontada, e ele manuseava o seu carrinho com extrema facilidade. Eu me lembrava dele. Dias sim, dias não, o via por ali. Era um senhor um pouco mal vestido, mas sempre sorridente, com quem as crianças adoravam comprar. Recordei-me de certa vez que comprei dele, porém, foi a única. Nunca gostei demasiadamente de doces.
                A expressão da senhora continuou a mesma. Sua filha parecia muito feliz quando soube que receberia seu tão esperado doce. Porém, não durou muito tempo, pois foi puxada com extrema raiva pelas garras de sua mãe. Esta disse para que aquela não se retirasse mais nem um instante do banco, e alegou que a menina estava ficando suada e fedida. Não aumentou o tom de voz, mas quero que saiba, querido leitor, que ignorância não tem volume. Ela existe até silenciosamente.
O senhor do algodão doce já se cansava de escutar todo aquele sermão sem motivo, ainda mais da mãe de sua cliente – a cliente mais delicada que já tivesse visto, eu creio.  A senhora olhou-o de cima a baixo, e perguntou o preço do algodão doce.
                - São três “real”, senhora. – Virou-se para a criança. Não fora somente eu que a admirei! – Qual que você vai querer, garotinha?
                A mãe resmungou algo sobre o preço do produto antes que a filha respondesse. Alegou que já havia comprado mais baratos em outros lugares, e com aparência melhor. O vendedor, quase desistindo de vender, consentiu. Não se foi pelo fato de que a criança esperava ansiosamente por aquilo que pedira, embora estivesse impedida de recebê-lo. Resolveu fazer uma oferta de dois reais e cinquenta. Disse-o já retirando seu carrinho de vendas do local, iniciando sua meia-volta para continuar seu trabalho. Afinal, tempo é dinheiro.
                - Dois e cinquenta não muda nada! Já comprei de um e cinquenta... Mas que dinheiro fácil! Pode ir-se, não o comprarei de você.
                O moço, que já se preparava para partir, o fez. Deu uma última olhada para os olhos da menina e virou as costas. Amedrontado talvez, e de certa forma humilhado. Creio que não fariam falta os três reais do bolso da nobre senhora... Mas grande diferença seria na vida de um vendedor de doces. A criança, para minha surpresa, não reagiu de nenhuma forma. Apenas abaixou a cabeça e permaneceu sentada ao lado daquela mulher desconhecida – dita sua mãe – que mal virava os olhos para soltar um sorriso que fosse. O celular parecia um mundo bem mais interessante que a própria vida. Não ressaltei que era maior que as suas mãos, da mais avançada tecnologia. Gargalhava de algo que lia ou ouvia, esquecia-se da própria existência. Perdia-se em letras minúsculas, que para mim são quase invisíveis a olho nu.
Caro leitor, não pense que sou bisbilhoteira ou algo do tipo; isso se chama dedução. Afinal, não é difícil de descobrir o que as pessoas fazem em um celular. Como eu já disse, elas são previsíveis.
A criança levantou-se do banco e mexia nas plantas que estavam ao lado. Arrancou uma flor, fixando-a no cabelo e sorrindo sozinha. Senti certa compaixão, o que me fez sorrir por dentro e admirá-la ainda mais. Olhei para o longe. Ainda era possível ver o vendedor de doces não tão distante de nós. Recebia clientes, conversava com crianças e como sempre, sorria. Sei que você me imagina comprando um doce para ela, mas não o fiz. Isso porque não queria entrar em confusão com aquela mãe, de forma alguma. Porém, recordei que guardara um pirulito dentro de minha bolsa e retirei para concedê-la. Concorde que assim é menos propício a uma confusão em praça pública, e mais discreto. Levantei com todas as minhas coisas, inclusive o livro, e rapidamente apressei o passo. Logo, estava ao lado da criança admirando as flores assim como ela. Apesar da escuridão, as flores tinham um ar incomparável, uma cor fluorescente... Eram lindas.

A garotinha mal notou minha presença, quando de repente pus o pirulito ao seu lado. Ela olhou-me, sem dizer nada. Apenas sorriu de forma pueril e encantadora, pegando o doce e começando a abri-lo. Quando olhou novamente para o lado, eu já caminhava longe. Procurara-me, enxergando-me após certo tempo, de uma distância maior. Pude ver sua mão direita sacudindo, como um “tchau”. Retribuí, continuando meu percurso para casa. Após subir no ônibus, não a vi mais. Talvez nunca mais a visse. Afinal, ricos são reservados, cultos e intelectuais. Pobres são apenas pobres...

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